O DIREITO AO BRINCAR NA PRIMEIRA INFÂNCIA: POR QUE AINDA PRECISAMOS LUTAR POR ELE?¹
28/05/2021
Por Gabriela Dal Forno Martins – Psicóloga e Mestre em Psicologia pela UFSC, Doutora em Psicologia pela UFRGS, com estágio de Pós-doutorado em Educação pela PUCRS. Assessora Pedagógica do Colégio Farroupilha e curadora da Escola de Professores Inquietos.
– “Brincar é existir”
– “Brincando se aprende”
– “Brincando se elaboram experiências vividas”
– “Brincando se criam e se potencializam conexões neuronais”
– “Brincando se transmite cultura e se produzem novas culturas”
Todas essas frases, muito potentes, têm sido utilizadas há muitos e muitos anos. São frases que refletem ideias, concepções, descobertas das mais diferentes áreas: filosofia, pedagogia, psicologia, neurologia, antropologia. Não é de hoje que se afirma a relevância do brincar para a vida humana. No entanto, por que ainda hoje precisamos discutir o direito ao brincar? Por que diversas organizações, empresas, instituições lutam pela garantia do direito ao brincar? O que aconteceu ao longo do caminho para que a valorização do brincar se perdesse, ainda que tenhamos ferramentas teórico-metodológicas muito potentes disponíveis? Para iniciarmos nosso diálogo, vou lhes contar uma história real.
Como o meu trabalho tem sido prioritariamente com a primeira infância, envolvendo educadores, gestores, famílias e profissionais de diversas áreas, é muito comum que eu receba imagens, vídeos, áudios e textos contando um pouco das experiências que esses adultos vivem com as crianças. Normalmente essas experiências passam pelo brincar. Então, vou lhes contar uma pequena história que construí a partir de algumas mensagens recebidas no ano de 2020. Essas mensagens foram de um grande amigo, que também é profissional da área da Psicologia, professor universitário e pesquisador na área da infância, mas que me escreveu como pai. Particularmente, acho isso brilhante, porque ele e sua esposa, apesar de serem grandes pesquisadores, quando se comunicam comigo, falam como pais, simplesmente. A partir disso, sempre temos discussões muito ricas, e fico muito encantada com as características que eles são capazes de perceber em sua filha e compartilhar comigo. Então vamos a nossa história!
“Em um sábado à tarde, no frio do inverno gaúcho, no mês de julho, José² estava passeando com a sua filha Joana pelo condomínio. O condomínio conta com uma área verde bastante extensa, e normalmente José e Rafaela levam Joana para caminhar nesse espaço em dias de chuva, de frio, de sol (realmente eles aproveitam muito esse espaço!). Às 17h20, recebo duas fotos pelo WhatsApp. Olho para as fotos e logo penso: “Alguma nova aventura da nossa Joana!”. Ela estava em um cantinho, entre um muro e uma grade, junto de outras meninas maiores. Joana completaria dois anos em agosto próximo, e desde que ela nasceu, na verdade antes de ela nascer, tenho tido o privilégio de acompanhar o seu desenvolvimento pelos olhos de seus pais, principalmente. José então escreve: “Joana encontrou algumas meninas brincando em um cantinho, com bebês. As meninas parecem ter entre 7 e 8 anos. Me pediu para pegar o seu bebê em casa”. Eles foram até a casa da família, pegaram o bebê (a boneca da Joana) e ela foi correndo para o cantinho onde as meninas estavam. José continua: “Cheguei lá e ela me expulsou! Estou aqui agora, mantendo distância”. Quando José me mandava essas mensagens, ele estava exatamente, nesse momento, mantendo distância, conforme o pedido da Joana. José então seguiu: “Não estou sabendo lidar!” e deu uma gargalhada virtual. Logo em seguida, chega mais uma imagem: nessa, Joana estava de mãos dadas com uma menina, e as outras caminhavam à sua frente. As quatro, caminhando com os seus bebês no colo, tinham então saído daquele cantinho e agora iniciavam uma próxima jornada, provavelmente dando continuidade ao seu enredo da brincadeira. José me escreve: “Agora deu ‘tchau’ e foi”. E mais uma risada pelo WhatsApp! Respondo então a José agradecendo pela cena que ele me permitiu vivenciar e imediatamente pergunto: “Como tu te sentiu com isso?” Já digo a ele que vou usar essa história de exemplo, e prontamente ele me autoriza. Começa a me dizer como se sentiu: “Nos primeiros segundos, bateu uma coisa muito engraçada: ‘Ai que bonitinha, mandando eu me afastar’. E aí logo pensei: ‘Não, é sério, ela quer que eu me afaste. Que audácia! Que coisa linda, toda autônoma. Tá, vou me afastar, mas não tanto, ela nem tem dois anos ainda, é o meu bebê’. Ele então conta que se afastou até uma distância considerável, mas que Joana olhou para ele, deu uma risadinha, olhou novamente e falou: ‘Passa, passa, papai’. José disse que, até aquele momento, Joana só havia falado “passa” (sai) para moscas que queria espantar. Enviou-me mais uma risada digital, mas disse que com essa fala resolveu se afastar consideravelmente, embora ainda assim pudesse enxergar o que estava acontecendo.”
Você deve estar se perguntando: “Por que Gabriela nos está apresentando essa história?”. Em um primeiro momento, a intenção de contar essa história é simplesmente para que nós possamos nos voltar para o brincar por ele mesmo, nos conectar com o brincar enquanto fenômeno humano. Por vezes lemos muito sobre o brincar, sobre muitas ideias que nos parecem interessantes, mas às vezes não conseguimos relacionar essas ideias com aquilo que nós vivemos e percebemos nas crianças. Por isso, a experiência de olhar simplesmente, olhar para o brincar, pode nos oferecer ferramentas muito valiosas, tanto para nossa atuação, quanto no sentido de nos mostrar caminhos para que de fato consigamos garantir o direito ao brincar. Na verdade, quando nós olhamos para o brincar, nos disponibilizamos a entender o que as próprias crianças nos ensinam sobre ele. Tentem responder às perguntas abaixo a partir da cena de Joana. Revisitem a cena se for necessário.
– O que vocês aprenderam sobre o brincar com essa cena?
– Brincar, para a Joana, é existir. Em que sentido? Conseguem perceber?
– Brincar é um espaço potencial de significação da vida?
– Brincar é aprender? Por quê?
– Brincar é reproduzir e produzir cultura?
Ainda que tenhamos feito esse exercício e que ele nos confirme as ideias dos grandes pensadores a respeito do brincar, insisto no quão difícil têm sido para nós, profissionais da primeira infância, realmente centralizarmos o brincar enquanto foco da nossa intervenção. E por que isso ocorre? Trabalho aqui com duas hipóteses que estão completamente relacionadas uma à outra.
A primeira delas diz respeito ao fato de que nós, adultos, por não brincarmos mais com tanta frequência, muitas vezes não conseguimos nos conectar ao verdadeiro sentido do brincar. Quando falo em “sentido do brincar”, remeto-me ao conceito de brincar. Pensem um pouco: se vocês tivessem que definir o que é brincar, o que vocês diriam? Mas tentem pensar o que é brincar na perspectiva de quem brinca (nesse caso, da criança pequena).
Brincar tem sido definido como algo que fazemos simplesmente pelo prazer que sentimos ao fazer. Essa definição foi construída a partir de estudos, especialmente estudos de observação do brincar, ou seja, que buscavam descrever, na perspectiva da criança, o que é brincar. Portanto, brincar é fazer algo sem uma meta final, sem um objetivo final. Brincar é viver muito mais o caminho do que a chegada, o processo do que o produto.
Quando Joana brinca com essas meninas, o objetivo da sua brincadeira não é chegar em um lugar, não é montar a casa, não é deixar a casa pronta. Aliás, quando a criança está imersa na brincadeira, muitas vezes, ela nem sabe onde vai chegar. O mais interessante ainda é que, quando ela chega, por vezes, em algum resultado (por exemplo, na casa montada), a brincadeira normalmente acaba. Brincar não tem um fim último, muito embora aos nossos olhos, aos olhos do adulto, consigamos perceber que uma experiência de brincar bem vivida pela criança pode gerar muitos bons resultados.
Por exemplo, nessa cena de Joana, vemos o potencial de desenvolvimento linguístico e simbólico (imaginativo) presente nas narrativas que ela estava vivenciando na relação com crianças mais experientes, que já possuem outras competências. Mas essa não é uma questão para Joana, ela não está pensando nisso. Joana está vivendo essa experiência porque, muito provavelmente, sente muito prazer ao vivê-la. Joana não tem qualquer consciência de que, ao brincar, está tendo uma oportunidade única de fazer parte de um grupo diferenciado dos adultos, de criar sua própria cultura. Ela só sente, só experimenta, só vive. E é exatamente assim que o brincar deve ser, na perspectiva da criança!
Quanto mais nós, adultos, permitirmos que as crianças vivam o brincar como uma experiência que tem sentido por ela mesma, mais estaremos garantindo a saúde integral da criança. Quando falo em saúde, aqui, incluo aspectos físicos, emocionais, sociais e intelectuais, integrados em uma mesma experiência. Por isso, garantir o direito ao brincar é tarefa de todos nós. Mas por que o brincar nessa perspectiva não tem valor na sociedade em que vivemos?
Trago então a segunda grande hipótese. Ela tem a ver com nosso tempo histórico, cujos valores estão muito permeados por uma cultura individualista, competitiva, uma cultura da informação, da globalização, da padronização. Nos parece que neste tempo não há muito espaço para que possamos viver a experiência por ela mesma, sem nos preocuparmos com os resultados. O brincar tem muita dificuldade de encontrar um lugar neste tempo, e todos nós estamos submetidos a isso, famílias, profissionais, todos. Muitas vezes, quando vemos uma cena de uma criança vivendo uma experiência, o que salta aos nossos olhos normalmente é aquilo que ela é capaz de produzir: o desenho que ela fez ou a habilidade que ela adquiriu e não tudo que ela viveu até ali. Nós, adultos, também nos sentimos mais competentes à medida que conseguimos fazer as crianças chegarem até o final, até o produto, esquecendo, muitas vezes, que o que é mais potente e valioso para criança é o processo.
Precisamos trabalhar juntos para constituir uma sociedade sensível ao brincar! Nas famílias, no bairro, na cidade, nas ruas, nas escolas, nas demais instituições. Valorizar o brincar exige, antes de qualquer coisa, um olhar curioso, interessado e de muito respeito pelas ações da criança.
1.Esse texto foi inspirado na fala realizada pela autora no V PIM Debate, promovido pelo Programa Primeira Infância Melhor, em 2020. A live na íntegra pode ser encontrada aqui.
2. Todos os nomes são fictícios.